A Fazenda Santa Cruz(cuja foto ilustra esse blog), situada no extremo sul do municipio de Perdizes em Minas Gerais, era parte integrante da Fazenda Perdizes de propriedade de Otaviano Martins Borges meu bisavô materno.A Fazenda Perdizes possuía uma area de cerca de 2000 alqueires mineiros ou algo em torno de 98.000.000 de metros quadrados,equivalentes a 15500 campos de futebol. Com sua morte foi desmembrada em 04 propriedades rurais onde coube a meu avô Hilderico uma área de 360 alqueires constituindo a Fazenda Santa Cruz. Aos demais herdeiros coube o restante.E foi ali naquela abençoada terra que, por longos períodos,curtí a minha infancia.E, hoje, apesar desse tempo estar já tão distante, ainda me sobressalto com imagens,histórias e fatos que me invadem a alma, algumas poucas vezes me torturam e, na maioria das vezes embalam meu coração em lembranças , ternamente doces e nostálgicas.A figura esguia e frágil de meu avô à janela da sala de jantar; minha amada d. Odilia , nas suas andanças rápidas pela cozinha a preparar as massas de biscoitos , broas e pães de queijo, onde, curiosamente , em cada massa fazia uma cruz com os dedos da mão esquerda numa especie de ritual,sem o qual nada daria certo; meus dois tios indo e vindo na sua luta diaria de fazer as coisas acontecerem.O quarto de despejo onde se penduravam os cachos de banana e se guardavam os cereais.A queijeira , cenário de labutas de minhá avó com suas mãos já calejadas pelo reumatismo, na feitura dos queijos , fonte de renda necessaria e indispensável na sustentação das despesas.O paiol,a varanda do carro de boi,a casa da bica, o monjolo que de tempos em tempos ressoava no pilão seu som surdo,compassado e continuo;a horta de couve, o carneiro hidráulico na sua batida seca ao bombear água para o reservatório.E a casa!Ah a casa!Construída por volta de 1915,esse casarão de 06 quartos de pé direito alto , de portas vigorosas exalava em todos os seus ambientes uma aura de extrema serenidade refletindo todo o sentido de familia ali presente.Seu enorme salão abrigava a mesa de jantar , o telefone que ligava as fazendas, o radio a pilha e acima dele o majestoso relógio , em madeira negra, com um cavalo esculpido em seu topo e cujas batidas ecoavam como música por toda a casa. Tudo isso é fruto da minha vivencia dos tempos de menino.Mas há algum tempo ao ver uma foto desta casa o coração bateu forte.Machucada pelo tempo, seu jardim abandonado,suas cercas caindo nos davam a sensação de uma historia em plena caminhada para o esquecimento.Mas, recentemente minha tia teve a idéia iluminada de fazer sua restauração, e assim restabelecer a sua dimensão histórica para todos aqueles ,que,de uma forma ou de outra, desde os mais antigos até os mais recentes, vivenciaram ali parte de suas vidas e de suas trajetórias.E assim foi feito.Os móveis de quarto de meus avós retornaram ao lugar de origem , outros móveis foram instalados , nova pintura e novos ambientes foram alí criados com todo o cuidado e zêlo para que se preservasse todo o espírito original.Do lado de fora, junto com o pé de manacá remanescente daqueles velhos tempos ,grama,folhagens e flores multicoloridas alegram e dão vida aos jardins agora caprichosamente protegidos por cercas imaculadamente brancas. .Mas, lá dentro, tenho certeza, os espiritos dos meus avós e tios reencontraram aquele ambiente familiar dos tempos idos , que para todo o sempre aquecerão nossos corações.
Category: Histórias da Fazenda
Clicia Vale Borges
Conheço a Clicia desde sua juventude.Filha de D. Alda e seu Pedro, nos encontrávamos de tempos em tempos no planalto dos Araxás em minhas idas de mascate de enxovais de noiva,vendidos por minha mãe.D. Alda foi o melhor agente de vendas que eu poderia desejar.Além de guarnecer os enxovais das quatro filhas ,era ela a arregimentar as futuras freguesas que me permitiam voltar de malas vazias e os bolsos cheios. E,era nesse ambiente que a gente se misturava.Depois ,mais adiante, tornamos a nos encontrar na fazenda de meu tio .Já aí Clicia não se ocupava de muitos interesses.Seu interesse na realidade tinha nome,sobrenome e um cavalo que diariamente o trazia de sua fazenda e o retornava a noite à casa do pai.No dia seguinte estava o Otaviano lá de novo.Clicia era uma menina de estatura média,magra,cabelos bem negros e de um olhar onde a vivacidade e sagacidade eram a marca registrada de sua personalidade.Suas tiradas aos gracejos dos tios ou primos eram infinitamente mais ricas e engraçadas do que se podia imaginar.Suas respostas brotavam de seus labios quase que automaticamente.Ela nem precisava pensar.Ela tinha no seu arquivo de memória sempre a melhor resposta.A vida seguiu e nos falavamos esporadicamente.Pelo fato do Otaviano,seu marido ser meu primo e sua tia ser casada com meu tio a gente se topava de vez em quando nos encontros das familias Borges e Pereira ValeA partir daí comecei a conhecer um pouco mais dessa fantástica criatura.E hoje me faço uma pergunta:quantas mulheres são necessarias para se fazer uma Clicia?Será aquela que cuidou por três anos de um ente querido em estado de coma?Ou será aquela que ao ver a sogra sem o marido e dois filhos se virou para o o filho que restou e disse :nós dois vamos cuidar de sua mãe!Ou ainda,será aquela que socorre entes queridos prisioneiros da solidão e do inexorável castigo do envelhecimento!E mais,será aquela que premida pela necessidade se tornou empresária ,sendo proprietária da Beliske,a melhor Padaria e Confeitaria de Uberaba.?Mas me arrisco um pouco mais.Será ela aquela mulher que nos recebe com tanta fidalguia e desprendimento a ponto de não nos permitir até o uso de um taxi quando em visita a sua cidade?Seriam preciso incontáveis mulheres para se fazer uma Clicia.Mas sei que basta uma,somente uma Clicia para se fazer uma grande mulher.
As datas da minha vida
Vinte e oito de dezembro ,dezessete de dezembro dois de fevereiro,dois de março ,dois de maio,dezenove de julho vinte e quatro e vinte e seis de julho.Não são apenas datas ou números.Tenho forte convicção que algo de místico,de transcendental ,de cuidadosamente programado ocorre na existência de qualquer ser humano.São eventos determinísticos que independem de sua vontade ou de sua ação e que acabam por marcar a sua vida de alguma forma .
Foi num vinte e oito de dezembro que iniciei minha vida profissional ,ao ser admitido na Usiminas e onde permaneci até me aposentar.Nasci no dia dezessete de dezembro e, acreditem,me formei num dezessete de dezembro.Dois de março é o aniversario de minha primeira namoradinha,dois de fevereiro marca o nascimento de uma pessoa que muito me marcou nos meus anos de juventude e num dezenove de julho me casei Em vinte e quatro e vinte e seis de julho nasceram minhas filhas..Dois de maio é também um dia muito especial.Nesse dia nascia no ano de 1895 Odilia Ribeiro Borges,minha avó.Para essa, o destino reservou uma vida de muita luta , abnegação e sacrifícios .Com o marido,ambos ainda muito jovens, estabeleceram-se nas terras da Fazenda Santa Cruz ainda por ser formada;sem pastos sem casa ,com tudo por fazer.Moraram em um paiol,que chamavam de Paiolinho,enquanto se construía aquela que viria a ser a sede da fazenda..Para formar os campos de pastagem arrastaram pedras e usaram as próprias mãos para ferir o solo e jogar as sementes.E, nessa labuta conviveram por 41 anos até o falecimento de meu avô em 1953.Minha ligação com ela foi sempre muito forte.Hoje ao abrir o cofre em busca de um documento me deparei com o relógio de pulso ,presente dela nos meus 15 anos.Ele está lá com o folheado esmaecido pelo tempo,sem o pino de dar corda,com os ponteiros irremediavelmente imóveis.Eu nunca quis consertá-lo.No meu intimo queria que ele ficasse ali eternamente retido naquele tempo de outrora onde a presença dela ainda me alegrava o coração .D. Odilia foi- se embora numa segunda feira de carnaval dezessete de fevereiro e eu tive o sagrado privilegio de ser o único dos netos a falar com ela, no leito do hospital .Suas ultimas palavras para mim foram: Fabio, fala pra esses médicos tirarem esses tubos do meu nariz”.Era a ventilação de oxigênio que a incomodava.Faleceu naquela noite.
Guardei carinhosamente de volta o relógio e instintivamente levei a mão ao pescoço onde,numa corrente de ouro,carrego a aliança de casamento do meu avô.No seu interior está escrito:Odilia e uma data.Querem saber qual?
Vinte e oito de dezembro de 1912.Onde tudo começou!.
Fabio Botelho /2015