Nuca nasceu João Abadia no final dos anos cinquenta.Filho de lavradores,morou nos primeiros tempos na Fazenda Santa Cruz,município de Perdizes no Triangulo Mineiro.Não me lembro de sua infância,já que minhas idas à fazenda se resumiam às férias escolares. Deve no entanto ter sido igual a de tantos outros cablocos; um ou dois anos na escola publica municipal e, o resto do tempo no cabo da enxada numa lavoura de arroz ou uma roça de milho.Nuca mal sabia desenhar o nome,naquela letra tremida que saia da ponta do lápis,num mistura de pânico,vergonha e esforço.Viveu sempre ali nas redondezas,ora numa fazenda, ora noutra,nunca perdendo de vista a terra dos Borges, onde nascera.Nos últimos quinze anos voltara a sentar praça em nossas terras ,para não mais sair.Era o jardineiro da sede,tratador de porcos,carregador de lenha,apanhador de frutas e verduras e vaqueiro nas emergências.Nuca era uma figura singular.Humilde e caladão jamais questionava uma ordem.Todos mandavam nele.Não só os patrões,mas os colegas e,até os parentes.Todos se julgavam no direito de lhe cobrar tarefas.E ele ali ,silencioso e cabisbaixo,pronto a obedecer.Era o seu jeito de levar a vida.Podia ser reconhecido à distancia pelo andar cadenciado,sem pressa,braços caídos ao longo do corpo franzino,e cabeça pendida sobre o ombro esquerdo.Trabalhava duro desde muito cedo até a tardinha.Muitas vezes ,após a jornada eu o chamava até a porta da cozinha e lhe oferecia uma cerveja ou uma talagada de pinga.Ele gostava desses momentos.Era um exemplo perfeito do cabloco mineiro:jamais lhe dava uma resposta definitiva ou direta.
__Como é Nuca ,vai pescar hoje?
__Tô pensando!
__A lua ta boa pra pescar?
__Ta cum jeito!
__Onde você vai pescar?
__Lá pras banda das pedrera,no ribeirão.
Ele era assim.Nunca dizia onde pescava.Não mostrava os poços pra ninguém.Pescar era sua paixão e o Ribeirão Perdizes seu santuário.Algumas vezes íamos juntos pescar.Não raro,enquanto caminhávamos ao longo das margens,eu percebia pelo canto do olhar que sussurrava algo inteligível acompanhada de gestos.O danado me benzia!Se tinha alguma coisa que ele não suportava era alguém pegar mais peixe do que ele.Quando chegávamos a um poço ele dizia:
__Vamo tentá aqui
__Aqui tem peixe?
__Muito.
Quando eu me dava conta ele tinha desaparecido.Passado algum tempo ele surgia e, ainda de longe perguntava:
__Pegou quantos?
__Nada.Só dei banho em minhoca.E você?
Aí ele abria um largo sorriso e feliz mostrava a penca de bagres,como se fosse um troféu.Me dava todos de presente.Seu prazer era simplesmente pescar.Toda vez que eu chegava na fazenda,encontrava uma bacia de bagres a me esperar.
__O Nuca ficou sabendo da sua vinda e pescou pra você,dizia minha mãe.
Não passava um fim de semana sem pescar.Num certo domingo de Setembro ele e o vaqueiro foram pescar.Pegaram como nunca.Voltaram para casa felizes com o sucesso da pescaria;à noite vieram as dores no abdômen.O Nuca foi levado as pressas para a cidade.Passou uma noite na enfermaria e depois foi transferido para a UTI do hospital.
Agora o Nuca não existe mais.E ,no silencio de suas margens vazias,na quietude de seus poços misteriosos,pode-se ouvir o murmúrio das águas do Ribeirão Perdizes a lamentar o companheiro que não volta mais.