Reminiscencias

Hoje, por um acaso desses que ocorre em nosso cotidiano, postei-me defronte um quadro pendurado em minha sala,quadro esse baseado em uma foto por mim tirada e magnificamente   reproduzida  em tela por nada mais nada menos que Nazareno Altavilla (1921-1989) em 1974,por encomenda de minha mãe Pronto o quadro ela me entregou dizendo:” você tirou a foto portanto o quadro é seu”..Ele mostra a fachada lateral do casarão da Fazenda Santa Cruz de meus avós, com seus cinco janelões,dois pés de manga quase centenários, e um  coqueiro infinitamente longilíneo com suas palmas definitivamente apontando para o sul,indicando a predominância do vento norte naquele vale sereno do Ribeirão Perdizes..A foto e por conseguinte,o quadro  mostram  toda essa paisagem  num  ponto inclinado acima do retratista.

Fiquei ali ,de pé, olhando o quadro,e, suavemente coração ,alma e memória ,foram se incorporando numa mágica simbiótica àquela  terra  intensamente vermelha , e os fatos e imagens   foram surgindo em minha mente   de forma tão nítida como se eu estivesse ali   naquele momento , e pudesse  concretamente  tocar aquela terra  que sempre me foi tão cara e amada.

Ali naquele mesmo local,chamado por todos de Pasto do Engenho – outrora havia ali um engenho de cana- vivi, ainda criança,  momentos de  intensa emoção ao participar de  eventos  e situações  que as crianças de hoje  jamais  vivenciarão.Era época da colheita do milho e  após ajudar na sua quebra lá na roça  , carregávamos o carro de boi  para o transporte até a sede da fazenda.A distancia era longa  e  como candieiro eu vinha à frente  conduzindo a junta de guia determinando o caminho a seguir.Embora isto tenha ocorrido há aproximadamente   60 anos,guardo ainda na memória o nome de algumas das juntas do comboio:a de guia era Baiano e Tinteiro,um branco e o outro bem fumaça;das juntas intermediarias ,Brasil e Rochedo , Brasil um boi vermelho  com uma enorme mancha branca           que ia do cupim  ao joelho da pata dianteira direita formando  algo parecido com o mapa do Brasil e  Rochedo  um boi roxo escuro de chifres longos;uma outra  parelha era formada por  Ramalhete e Bordado,este último um boi de couro bastante escuro,quase preto, todo rabiscado caprichosamente de linhas brancas a lhe desenhar todo o corpo ,e mais não lembro.A ultima junta,aquela , em cuja canga  se apoiava a mesa do carro era chamada de junta de cabeçalho ou de coice Se chamavam Campista e Completo.Era a junta que suportava os piores   encargos.Nas subidas todos se esforçavam,mas nas descidas era a junta de coice que aguentava o tranco  praticamente sozinha.Nessas situações era visível e assombroso ver todo o peso do carro empurrar  a canga,por sinal pesadíssima, para a frente até encostá-la nos chifres   dos animais, e, era ali,nos chifres que ocorria toda a resistencia.Normalmente o carro vinha completamente lotado,com  as espigas de milho passando acima do limite da esteira e com os fueiros vergados pelo peso.Numa dessas viagens, lá vínhamos  nós subindo este pasto com o carro naquele   lamento candente e triste que podia ser ouvido ao longe,quando   subitamente  um dos rodeiros  se enterrou  no solo até quase a sua metade.O comboio   simplesmente travou.Meu tio ,que era o carreiro, fez varias tentativas de    desencravar.  Todas elas se mostraram infrutíferas..Olhou para as juntas,que ele conduzia sempre com maestria, e vendo   que o esforço os tinha extenuado virou -se pra mim lá na frente e gritou  “ vamos dar um descanso aos bois e depois tentaremos”.E lá ficamos nós por talvez uma hora  sentados à beira da estrada sob a sombra de um jatobá..Por fim ele se levantou, ergueu o chapéu acima da cabeça,olhou para o céu como a pedir ajuda e me disse para largar a guia e me postar do outro lado  do comboio e  fizesse o mesmo que ele iria fazer.Enquanto percorria todas as juntas ia dizendo o nome de cada boi.Feito isso , colocou-se a meio caminho entre a guia e o cabeçalho e  brandindo o guiso da vara de ferrão -ferrão nunca usado- falou firme pro comboio:”  agora vamo vê se vai”  e imediatamente começamos a gritar o nome de cada um .O que  eu vi e ouvi,jamais se apagará de minha memória..Eu vi boi caindo de joelhos sobre as patas dianteiras levados pelo esforço,vi boi berrando roucamente  com a língua pra fora e olhos flamejantes  e vi boi soltando sangue pelas ventas  de tanto buscar energia   em suas entranhas.Lentamente a roda começou a se mover  e alcançou solo firme.Meu tio deu o comando de parar e    nós dois ,ainda ofegantes, sentamos no chão e ficamos a  olhar  aqueles animais também  exaustos  aguardando o próximo comando.Me virei pro meu tio e perguntei:e agora?Ele olhou para mim ,tirou novamente o chapéu,olhou pro céu,deu um leve sorriso e disse:”não tenho coragem de hoje pedir mais e eles.Vou desengatar o carro,colocar a  espera(peça  de apoio para manter a mesa do carro na horizontal)  e liberar esses bravos animais para um merecido descanso.Amanhã voltaremos.”

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