ANNA

Aneta Kucharska  entrou  em minha vida   em uma manhã de sábado, no inicio de 1963,quando o carteiro me entregou ,aquela que seria a primeira de uma serie de 117 cartas , 70 postais e  outra centena de fotos,ao longo dos anos até 1970. Com o passar do tempo Aneta se transformou em Anna e temas culturais ,preferências literárias e dados históricos, quase não surgiam em nossas conversas.Falávamos de nossos sonhos,nossas expectativas  e nossas aspirações.Embora   residente em um país  pertencente ao bloco comunista– estávamos em plena guerra fria—Anna era de família   católica como a maioria do povo polonês.Nascida   pouco antes do término da guerra,em fevereiro de 1945,era filha de um professor de química e  sua mãe era dona de casa.Quando me enviou aquela primeira carta tinha   acabado de completar 18 anos.Eu tinha 20.Estava ingressando na Universidade de Varsóvia e cursava Linguas,mais precisamente Inglês e  Francês.Em 1964 dois fatos relevantes aconteceram: a revolução militar  e, no plano pessoal  uma relação  que chegara ao fim.E, nessa fase dificil ela foi o meu suporte de vida,meu oxigenio e minha âncora.Embora jamais tivéssemos discutido qualquer tema político receávamos que  nossa correspondência  pudesse ser afetada.Afinal de contas ela estava em um país comunista e eu em um país de ditadura de direita.Mas nunca houve qualquer turbulência e continuamos a nos escrever normalmente.Em uma noite de 1966  D. Osvaldina  mãe do Tostão liga pra minha  mãe e diz:” D. Ivone,  o Eduardo( ela não o chamava de Tostão),acaba de voltar da seleção brasileira que esteve na Polonia,em Varsóvia, e trouxe uma encomenda para o seu filho Fabio.Peça-lhe para buscá-la   no Posto Tostão.Ele vai estar lá amanhã de manhã.”Mal pude esperar o dia seguinte.Tostão me recebeu no pequeno escritório e começamos a conversar:
Tostão __Eu estava no saguão do hotel quando uma moça se aproximou  e danou a falar em inglês.Só entendi o seu nome.Me entregou um pequeno   pacote para você.Aqui está.
Eu __Eu não quis abri-lo ali e perguntei:Ela é bonita?Ele me olhou intrigado e surpreso; Tostão __ Perai Fabio,você não a conhece?Ela é alucinada por você!Achei até que vcs já tinham transado!Ela é linda de parar e ficar olhando! Eu disse que só conhecia pelos retratos enviados.Agradeci e me despedi.Em casa abri com ansiedade o pequeno pacote.Dentro,uma caixa de madeira  cuidadosamente trabalhada a fogo e dentro dela uma flor  – Edelweiss- e uma mecha de cabelo cor de cobre delicadamente presa por um pequeno laço.No final de 1969  retomei  meu antigo relacionamento e após 04 meses de muita reflexão tomei a decisão mais difícil de minha vida.Escrevi-lhe uma ultima carta.Sua ultima carta veio em seguida,Não era necessário ler o que estava escrito.Bastava  observar as marcas de lágrimas no papel.Eu sabia que aquilo me acompanharia pelo resto de minha vida .De tempos em tempos  eu me perguntava: por onde anda a Anna? Tomara que esteja bem .Um dia , acho que em 1998, levando minha mãe a uma agencia do Correio em Araxá, estacionei a camionete em frente a uma papelaria e enquanto aguardava percebi bem na porta da papelaria aquele rolo com postais.Num ímpeto escolhi um ,  coloquei o antigo endereço de Varsovia,pedi noticias pus meu endereço e telefone e enviei.Não veio nenhuma resposta.Decorrido um bom tempo,estava eu assistindo TV quando minha filha me diz:”Tem uma pessoa querendo falar com você ao telefone –em inglês. Era Anna .A mãe de Anna recebera o cartão e o enviara para ela em Nova York  onde residia.Era o ano de 2000.Trocamos endereços e  chegamos a trocar algumas cartas.Eu,falando de minha família,das filhas e ela , já divorciada  falando de sua vida, seu trabalho e suas amigas.Nosso ultimo contato foi em agosto de 2012,quando lhe telefonei    para dizer-lhe que estávamos indo para o Leste Europeu,inclusive  Polonia .Ela até nos recomendou visitar a Cracóvia por ser muito bonita.No inicio de 2013,por ocasião do seu aniversario tentei falar com ela.O numero já pertencia a outras pessoas.Tentei ,em vão localizá-la,percorrendo inclusive a lista das vitimas do furacão Sandy,que devastara exatamente  a região onde morava.Finalmente ,fiz uma ultima tentativa, e acessei um certo site.Digitei o nome dela,Aneta Puzi…(sobrenome do ex marido) e então apareceu um numero de um registro “APDDC865240……Fiquei chocado.O site era o New York Obituary. Jamais quererei saber o que aconteceu.Preferí  ficar com o que eu disse a ela naquela ultima carta:”Anna,não importa o que aconteça no futuro,você estará sempre em meu coração.”

Os gaúchos e eu – Santo Angelo

Após deixar Cruz Alta ,seguimos para o oeste,passando por Ijuí até cruzar  para a margem direita do rio de mesmo nome, e chegarmos a Santo Angelo.Engraçado,mas deve  haver alguma lei estadual determinando que as cidades gauchas tenham,todas elas,uma rua 15 de Novembro.Santo Angelo tinha a sua,e, exatamente nela ficava a residência do Seu Aparicio Lemos e D. Adelaide,sua esposa,irmã de minha sogra.Eu já os conhecia pois foram nossos padrinhos de casamento.Foi um contato muito rápido.Eles chegaram em Belo Horizonte no sábado  e o casamento foi na segunda-feira.Um dia conto por que nos casamos numa segunda-feira.Pois bem a cerimônia foi às 19 horas na Basilica de Lourdes  e em seguida fomos pra recepção na Churrascaria Farroupilha  ,de propriedade de meu sogro.Dali mesmo saímos em viagem de lua de mel.Não houve tempo para   maiores conhecimentos .Embora um pouco mais tranquilo após a acolhida que tivemos em Cruz Alta ,o fato é que aquela família ainda me era  praticamente desconhecida.Mas pela segunda vez em dois dias,aquele ar de mineiro desconfiado foi dando lugar  a uma atmosfera de descontração,de  sentimento  de  acolhimento ,de se sentir- em casa ,entre amigos de convivência de longa data.As conversas fluiam de maneira expontanea,natural ,divertida até.Seu Aparicio,D. Adelaide.sua filha Terezinha,o genro Luis – este,patrono de cartas minhas para Maria Helena,endereçadas ao Banco do Estado do Rio Grande do Sul,onde ele trabalhava,e, repassadas secretamente para ela ,quando em férias lá no Sul – faziam com que o tempo passasse sem que nos déssemos conta.

No terceiro dia fomos todos pra fazenda Sta. Terezinha , nas proximidades    das ruínas de    São   Miguel das Missões.A sede da fazenda ficava no alto de uma coxilha.Cerca de oitenta metros abaixo da frente da casa,havia um banhado seguido de uma capoeira    densa o bastante  para proteger nascentes e servir de abrigo e refugio para os animais silvestres..A casa era  bastante confortável,sem ostentação,com moveis sóbrios,e uma cozinha ampla com uma mesa grande    tomando boa parte do espaço.Lá fora  o vento e o frio varriam as coxilhas  sem trégua.

Lá dentro,na cozinha  um grande fogão  ,conhecido dos mineiros como   “fogão de colono”, de seis bocas,ou seriam oito? era alimentado por seis portas,onde a lenha cuidadosamente aparada, era constantemente renovada. De dia fogão, lareira à  noite.Ali   eram servidas todas as refeições, do café da manhã  ao jantar.

Seu Aparício   punha-se de pé entre 4:30  e 5:00 da manhã  e já o fazia  impecavelmente usando seu lenço no pescoço,suas bombachas ,suas botas e esporas.Seu chapéu ficava ali pendurado ao lado da porta, bem a mão caso precisasse.Seu primeiro compromisso do dia era ,ali mesmo na cozinha.De pé , com uma bota apoiada na trava de uma cadeira ,cumpria a sagrado ritual de matear.Só depois disso atravessava o umbral da porta da cozinha para o  pátio do poço , ia até os galpões ,inspecionava  os afazeres do dia  e só então retornava para o café.Era um homem de estatura mediana, de fala  mansa mas era econômico nas palavras.Falava o necessário..A voz tinha um timbre agradável   e suave.Seu sorriso era curto com os lábios  levemente retraídos. Nunca o vi dar uma risada mais aberta.Aquele pequeno sorriso já estava de bom tamanho.Me lembro do primeiro café da manhã:Estávamos à volta da mesa quando ele entrou na cozinha vindo dos galpões, e disse com aquele sorriso maroto  que metade do gado leiteiro estava doente.Ante meu olhar de perplexidade , D. Adelaide enxugando as mãos  no avental  me tranquilizou:”preocupa não Fabio, nós só temos duas vacas  de leite e uma adoeceu.”A farra foi geral e ele lá,com aquele leve sorriso nos lábios.Passamos a tarde  do dia seguinte na varanda da casa, admirando aquela paisagem bucólica ,de coxilhas ,banhados e capoeiras que se sucediam a perder de vista.Para suportar o frio, tomamos, nós todos,seu Aparicio,D. Adelaide,Terezinha,Luis,Maria Helena e eu  ,duas garrafas de cachaça curtida no butiá,passadas de mão em mão,como se fosse uma roda de chimarrão.

Eu ainda veria Tio Aparicio uma ultima vez, em Junho de 1975 , no casamento de meu cunhado em Belo Horizonte.Diagnosticado meses antes , a doença avançava  rapidamente.Ele estava muito debilitado, e, quase não conseguia falar.Mas deu-me aquele sorriso curto e maroto ,já meu velho conhecido..

No dia 13 de março de 1976   — dia em que minha sogra completava  49 anos  — Tio Aparicio   desencilhou sua montaria, lançou suas boleadeiras em direção às estrelas e entrou para e eternidade.

Ano passado Tia Laida foi ao seu encontro.E eu em minha  imaginação os vejo , naquela  querência  eterna, com banhados de águas  serenas  e poços de cristal .Ele, retornando  dos seus galpões , entrando na cozinha, dando aquele sorriso maroto, passando o braço na cintura de Tia Laida, enquanto  diz suavemente em teu ouvido:

“E agora vamos tomar café, minha prenda!

Fabio Botelho/2015

Os Gauchos e Eu – Rumo ao Sul

Em julho de 1972,decidimos,eu e Maria Helena  ,que o destino de nossas primeiras férias seria o sul do país.De fusca!

Bem naquele tempo  o movimento nas estradas era baixíssimo,alem disso , apesar de ser um fusca , não havia problema nas ultrapassgens.Caminhões e ônibus eram lentos.FNMs e Mercedes Benz   não eram páreo para um Fusca 1500.principalmente nas subidas.Saimos de Belo Horizonte bem cedinho e a noitinha estávamos em Curitiba.Pernoitamos lá sem ser molestados pelo frio  graças à calefação do hotel.Deixamos Curitiba na  manhã seguinte quando os primeiros raios de sol surgiam no horizonte.Optamos pela BR-116  e ai o frio chegou.Foi necessário manter   aquele ar quente   durante toda a viagem.Almoçamos em Vacaria,já no Rio Grande do Sul ,e, ali mesmo deixamos a BR-116 e pegamos a 265,passando por Lagoa Vermelha,Passo Fundo Carazinho, e no entardecer chegamos em Cruz Alta.Cidade natal de Érico Verissimo e também da Maria Helena.Cruz Alta era uma cidade pequena,berço de triticultores,bastante aprazível,não fosse o frio ,que aquela altura já  nos castigava até os ossos..Estacionamos  em frente a casa dos tios de Maria Helena, Davi e Odete,sendo ela irmã   de meu sogro.Tinhamos percorrido cerca de 2000 quilometras em dois dias ,sem qualquer tipo de incidente.À noitinha,depois de acomodados, nos sentamos para jantar.Não me lembro bem,mas acho que tinha, entre outras coisas, um caldo quente altamente confortador.Depois fomos para a sala ,onde uma lareira  crepitava e inundava o ambiente com seu calor.Ali passamos momentos extremamente agradáveis.Embora aquela fosse a primeira vez  que o via,e também a ultima,seu Davi era uma pessoa  alegre,muito perspicaz e tinha sempre um  comentário  divertido  sobre o que quer que  se conversasse naquela sala.E foi ali,naquele ambiente ,que comecei a  compreender  ,ainda de maneira muito incipiente a alma daquela gente.Em momento algum,desde que  pisei o chão daquela casa  me senti  desconfortável.Eu,que sempre fui uma pessoa tímida,arredia e acanhada— que o diga meus parentes de Araxá e Uberaba – tive ali,no Solar dos Ramos,aquela sensação plena ,de calor humano, de compartilhamento de pertencimento.Não me tratavam diferente.Era como se eu frequentasse   aquela casa e aquela família ha muito tempo.Não mudaram seu jeito de ser;simplesmente foram ,o tempo todo, eles mesmos.

Aquela foi a única   noite  que compartilhamos,de forma tão rica,tão gratificante   e,que guardo no coração com muito carinho.Na manhã seguinte  partimos para Santo Angelo.

Fabio Botelho/2015